Gostamos de escrever e de pensar. Costumávamos trocar e-mails, mas decidimos expor nossas ideias a quem quer que queira vê-las, e assim surgiu o Abracabessa. Sem cedilha mesmo, porque tudo pode ser mudado - e mesmo que não seja para melhor, às vezes a mudança traz consequências fantásticas!

31 de mai. de 2010

Luzes

Uma mulher acende velas. Naquela janela em frente, bem ali, uma mulher acende velas. Ela fecha a vidraça, a chama sobe alto, depois diminui, então entreabre o postigo e o vento que vem da rua em nada interfere na dança da chama. Deve haver um móvel onde fica o cachepot. Não usa candelabro ou castiçal, nem algo improvisado, mas um cachepot vasado, pois quando a vela está pequena forma-se uma figura parecida com flor ou estrela. É o melhor momento da vela, quando está pequena, porque a chama se agita sem motivo, torna-se inusitada, sai da fleuma de sua única obrigação de iluminar e pende então para qualquer lado, sem motivo nem brisa.


Terá perfume aquela vela? Penso que sejam velas sempre iguais, ao menos no tamanho o são. Se uma for perfumada, todas serão. Se não servirem para perfumar o ambiente, para que acende as velas, essa mulher?

Nunca, até hoje, fui muito além nos pensamentos sobre ela. É já noite quando chego em casa e as rotinas de chegar sempre terminam em meu quarto. Abro então minha janela e já procuro a luz que vem da outra. É tão natural quanto abrir os olhos ao som do despertador e procurar o sol para estar certa de não ser um sonho, para ter a triste certeza de precisar deixar as cobertas e me tirar do melhor do dia. Nunca a vi, nem dela tenho qualquer curiosidade, não quero saber com quem mora ou do que gosta ou mesmo para que acende as velas.

Pergunto isso, de mim para mim, com a mesma intenção de saber se está “Tudo bem?” com o rabugento vendedor de cocada. Se algum dia ele decidir responder irá atrapalhar todo o meu dia. Mesmo assim vou parar para ouvi-lo, e se for algo triste vou me comover e ficar muito penalizada e até vou ajudar, porque as pessoas tristes me dão certo alento, é bom saber que há pessoas com problemas piores que os meus e que eu, não podendo resolver os meus, faço diferença na vida alheia. É por isso que faço caridade. Não sei as outras pessoas, mas eu faço caridade porque não quero passar de todo por incompetente – “Não resolvo os meus porque são problemas terríveis, mas ajudo muita gente!”. Tem funcionado.

Escorrego a cortina e fecho minha janela, mas o tecido fino deixa aquele brilho fraquinho, lá longe, como se a distância fosse de anos e não de alguns passos. Nunca vi homem de coque, mesmo que traga cabelos compridos, por isso sei que é uma mulher. E sei que acende velas.

Meu gato morreu. Comeu algo envenenado, creio. Essa foi a explicação para todas as mortes felinas da minha infância, por isso mantenho a ideia de que gatos não adoecem nem têm morte natural, todos são assassinados, insistentemente, 7 vezes. De onde vem tanto ódio aos gatos? Será inveja de sua ascendência leonina? O meu não merecia inveja de ninguém. Vira-lata, bandoleiro, infiel como ele só, já estava aqui quando vim morar, mas era bem cuidado então suponho que deixou a família e voltou para “sua” casa. Dizem que esses bichos se apegam à moradia e não às pessoas. Agora foi embora de vez – ou não, quem sabe? Sei que não volta mais de madrugada, não grita no telhado nem na minha porta, não sobe na minha cama, não o derrubo mais, nem se lambe, nem me atrapalha o caminhar, nem me olha. Se ninguém me olha, como sei se existo? O gato não me olha, o vendedor de cocadas não me responde, a dona da janela não se importa de ser observada por mim. Eu existo?

Deve ter viajado. Há dois dias as janelas abertas não mostram movimento na casa. Não estou preocupada com ninguém, tanto que olho apenas para ver se alguém acende a vela, alguma vela, ou o resto da que já esteja lá, caso não tenha queimado por completo.

Terminei de arrumar a última caixa. Os móveis foram alugados com o imóvel, ficarão todos, trouxe apenas roupas e enxoval de cozinha. Nunca tirei uma pequenina lasca de parede, nenhuma quina se quebrou em mim, não há crianças para riscar paredes e as visitas, civilizadas, nunca barbarizaram por aqui. Entrego tudo como encontrei. Menos o gato, que não está mais, mas não por culpa minha, foi veneno, mas não eu. As pessoas dirão, amanhã, quando vieram visitar para conhecer ou alugar: “Nossa, parece que ainda mora alguém, tão arrumado está” e nunca entendi essa frase, pois é justamente o oposto, se mora alguém, deve estar sujo, porque a vida marca as coisas. O rosto, o colchão, o chuveiro, a pintura, a fritura, o reboco, o suor, a lâmpada, a sujeira no rejunte, o batom, o lenço, a vela. Se alguém morasse aqui haveria marcas, não há cuidado que apague as marcas de uma vida. Vida discreta que seja, tímida, resumida, sumida, leve, lenta, suave, fugida. Vou deixar as caixas assim mesmo, sem lacrar, não quero ir à venda buscar fita adesiva.

Trancou a porta, passou a chave pela fresta dentro do envelope com um bilhete “Depositei o último mês. O gato foi envenenado, não vai incomodar o próximo inquilino”.

30 de mai. de 2010

Luzes

Uma mulher acende velas. Naquela janela em frente, bem ali, uma mulher acende velas. Ela fecha a vidraça, a chama sobe alto, depois diminui, então entreabre o postigo e o vento que vem da rua em nada interfere na dança da chama. Deve haver um móvel onde fica o cachepot. Não usa candelabro ou castiçal, nem algo improvisado, mas um cachepot vazado, pois quando a vela está pequena forma-se uma figura parecida com flor ou estrela. É o melhor momento da vela, quando está pequena, porque a chama se agita sem motivo, torna-se inusitada, sai da fleuma de sua única obrigação de iluminar e pende então para qualquer lado, sem motivo nem brisa.


Terá perfume aquela vela? Penso que sejam velas sempre iguais, ao menos no tamanho o são. Se uma for perfumada, todas serão. Se não servirem para perfumar o ambiente, para que acende as velas, essa mulher?

Nunca, até hoje, fui muito além nos pensamentos sobre ela. É já noite quando chego em casa e as rotinas de chegar sempre terminam em meu quarto. Abro então minha janela e já procuro a luz que vem da outra. É tão natural quanto abrir os olhos ao som do despertador e procurar o sol para estar certa de não ser um sonho, para ter a triste certeza de precisar deixar as cobertas e me tirar do melhor do dia. Nunca a vi, nem dela tenho qualquer curiosidade, não quero saber com quem mora ou do que gosta ou mesmo para que acende as velas.

Pergunto isso, de mim para mim, com a mesma intenção de saber se está “Tudo bem?” com o rabugento vendedor de cocada. Se algum dia ele decidir responder irá atrapalhar todo o meu dia. Mesmo assim vou parar para ouvi-lo, e se for algo triste vou me comover e ficar muito penalizada e até vou ajudar, porque as pessoas tristes me dão certo alento, é bom saber que há pessoas com problemas piores que os meus e que eu, não podendo resolver os meus, faço alguma diferença na vida alheia. É por isso que faço caridade. Não sei as outras pessoas, mas eu faço caridade porque não quero passar de todo por incompetente – “Não resolvo os meus porque são problemas terríveis, mas ajudo muita gente!”. Tem funcionado.

Escorrego a cortina e fecho minha janela, mas o tecido fino deixa aquele brilho fraquinho, lá longe, como se a distância fosse de anos e não de alguns passos. Nunca vi homem de coque, mesmo que traga cabelos compridos, por isso sei que é uma mulher. E sei que acende velas.

Meu gato morreu. Comeu algo envenenado, creio. Essa foi a explicação para todas as mortes felinas da minha infância, por isso mantenho a ideia de que gatos não adoecem nem têm morte natural, todos são assassinados, insistentemente, 7 vezes. De onde vem tanto ódio aos gatos? Será inveja de sua ascendência leonina? O meu não merecia inveja de ninguém. Vira-lata, bandoleiro, infiel como ele só, já estava aqui quando vim morar, mas era bem cuidado então suponho que deixou a família e voltou para “sua” casa. Dizem que esses bichos se apegam à moradia e não às pessoas. Agora foi embora de vez – ou não, quem sabe? Sei que não volta mais de madrugada, não grita no telhado nem na minha porta, não sobe na minha cama, não o derrubo mais, nem se lambe, nem me atrapalha o caminhar, nem me olha. Se ninguém me olha, como sei se existo? O gato não me olha, o vendedor de cocadas não me responde, a dona da janela não se importa de ser observada por mim. Eu existo?

Deve ter viajado. Há dois dias as janelas abertas não mostram movimento na casa. Não estou preocupada com ninguém, tanto que olho apenas para ver se alguém acende a vela, alguma vela, ou o resto da que já esteja lá, caso não tenha queimado por completo.

Terminei de arrumar a última caixa. Os móveis foram alugados com o imóvel, ficarão todos, trouxe apenas roupas e enxoval de cozinha. Nunca tirei uma pequenina lasca de parede, nenhuma quina se quebrou em mim, não há crianças para riscar paredes e as visitas, civilizadas, nunca barbarizaram por aqui. Entrego tudo como encontrei. Menos o gato, que não está mais, mas não por culpa minha, foi veneno, mas não eu. As pessoas dirão, amanhã, quando vierem visitar para conhecer ou alugar: “Nossa, parece que ainda mora alguém, tão arrumado está” e nunca entendi essa frase, pois é justamente o oposto, se mora alguém, algo está sujo, porque a vida marca as coisas. O rosto, o colchão, o chuveiro, a pintura, a fritura, o reboco, o suor, a lâmpada, a sujeira no rejunte, o batom, o lenço, a vela. Se alguém morasse aqui haveria marcas, não há cuidado que apague as marcas de uma vida. Vida discreta que seja, tímida, resumida, sumida, leve, lenta, suave, fugida. Vou deixar as caixas assim mesmo, sem lacrar, não quero ir à venda buscar fita adesiva.

Trancou a porta, passou a chave pela fresta dentro do envelope com um bilhete “Depositei o último mês. O gato foi envenenado, não vai incomodar o próximo inquilino”.

7 de mai. de 2010

"Chuva de contairnes, entertainers no ar".

Big Brother Brasil. Rebolation. Carnaval. Ressaca do carnaval. Gaiola das Popozudas. Sorria, você está na Record. Plantão de Polícia. Quem deve deixar a casa? Vote agora! A fazenda. O Fuxico. Copa do mundo. Esquadrão da moda. Zorra Total. Casseta e Planeta. Gugu ou Faustão? NxZero. De volta pra minha terra. Swinga, Requebra, Samba Maceió.



Sabe aquela época lá do colégio em que você se sentia sufocado assistindo aula de química e torcia pra tocar logo pro intervalo? Então, parece que agora todos nós podemos pular essa parte chata e ir direto pro pátio, para a hora do recreio!
Não entendeu como? Super simples. Basta ligar a televisão ou outro meio de espaço midiático como a internet, e observar o estilo de conteúdo ao qual estamos constantemente sendo bombardeados.
É o regime novo da atriz que emagreceu 10 kgs em 1 mês, um cantor que está de casinho novo, a filha de um outro artista, que nem é do meio, mas já ganha condição de celebridade, ou mesmo o seu Zé da esquina que foi ferido num episodio violento, e ainda agoniza, enquanto as câmeras se voltam atentas para o seu corpo.
“Por que a noticia é um show”, diz frequentemente um locutor de um programa de rádio AM. E baseados nesse espetáculo é que os meios de expressão da mídia resolvem agir. Programas e noticias que coloquem o expectador á par de seus direitos, sejam eles coletivos ou individuais, são desconsiderados. Porém o BBB, o rebolation e outros tantos dentre os citados acima que nos deixam apenas passivos e nada nos acrescentam, chovem aos montes.
E digo isso por que me recordo da época em que o BBB ia ao ar; numa certa manhã, ligo a TV e me deparo com Ana Maria Braga e mais meia dúzia de famosos discutindo e analisando o perfil de cada participante do reality, e o rumo que este poderia tomar, a medida que os jogadores fossem saindo. Custei a acreditar que em meio á tantas questões mais serias à serem discutidas, um programa dedicasse tanto tempo (e reflexão oO) a algo tão banal. Audiência...
Algumas semanas antes, logo após o carnaval, lá estava o Faustão trazendo o vocalista do Parangolé, para ensinar a dançar o seu “Rebolation”, e ainda foi perguntado a ele de onde surgiu inspiração para compor tal sucesso (parece até ironia, mas não foi!), sim, o cara é compositor, e a inspiração veio quando ele assistia vídeos no youtube. (Posso fazer uma lista de bandas que mereciam muito mais aquele horário para divulgação de seu trabalho).
O que são destinados a nós são informações como esta, de caráter hedonista. No meio dessa produção do entretenimento entram também mortes, violência, drogas e tragédias de todos os tipos, empurradas goela abaixo, em plena hora do almoço, em programas de meio-dia.
Para conseguir uma matéria vale tudo, conversar com o acusado diretamente na cela, filmar corpos recém - assassinados, tentar à todo custo entrevistar a mãe ainda em choque que acaba de perder seu filho...
Após minutos de “tragédia” no ar, surge logo um merchandising, uma partida de futebol, ou o desenho animado, destinados à quebrar essa “tensão” e nos fazer voltar a passividade outra vez.
Me diz se não funciona? Claro que sim, nos acostumamos á ver a brutalidade ao nosso redor e achar que ela é mesmo mais um elemento do nosso cotidiano, por que já foi tão filmado que vira rotina, e se vira rotina, perde todo aquele sentimento que a gente sente quando entra em contato com alguma coisa nas primeiras vezes. Dessa forma, nos acostumamos a ouvir que um amigo foi assaltado e ao invés de questionar o mundo, pedir que ele tome mais cuidado, por que o mundo... ”Ah, o mundo ta assim mesmo...”.
Vira rotina, banalidade, e a gente se acostuma a cruzar os braços e não sair da posição de contemplador. Apenas comprando ingressos, matando a sede, sendo sedados, e quando o espetáculo acaba, (nem dando o trabalho de levantar-se) pegar o controle e mudar de canal.


* Título referente à música Chuva de Contairnes, de Humberto Gessinger.